quarta-feira, 10 de dezembro de 2003

Por um Natal sem jantares!

É a mais hipócrita das noites.
Empregados a fingir que gostam dos patrões e vice-versa.
É de náusea!

Entrámos no mês de Dezembro e aproximamo-nos vertiginosamente do momento mais doloroso do ano para todos os que trabalham em empresas: o jantar de Natal.
Não há pior seca que desperdiçar aquelas horas da nossa existência no mais complexo exercício de cinismo a que tal função nos obriga. Há mesmo caso de relatos de trabalhadores que entram em delirum tremens na véspera do famigerado jantar e até de outros que optaram por se atirar da janela para o precipício ao soarem as badaladas das oito.
O que é difícil de saber é aquilo que mais nos agonia. Se o sorriso idiota do chefe que ainda ontem nos deu uma rabecada só por a gente se ter atrasado a conferir as facturas do mês e que agora nos passa a mão pelo pêlo. Se o cheiro do sovaco da dona Guilhermina que nos calhou em sorte, ao lado, na mesa. Se o discurso baboco do patrão, com aquelas tretas nojentas que somos todos uma grande família quando se está mesmo a ver nos olhos do gajo que o tipo se prepara para cortar a cabeça a metade da malta que ali está.
Também faz parte desta infeliz tradição misturar o maralhal todo para fingir que até somos todos iguais e que lá isso de uns ganharem dez vezes mais que os outros não tem importância nenhuma, pois o que importa é que estejam todos a contribuir para o bem comum, ou seja, para a felicidade dos tipos lá de cima, que com a distribuição dos lucros da firma sempre podem sacar umas gajas boas para dar umas voltinhas sem terem de se sujeitar ao refugo de bares de segunda ou umas viagens a Bragança.
É assim perfeitamente normal que fiquemos entalados na mesa entre o electricista da manutenção, que arrota entre cada pastel de bacalhau que abocanha, e a dona Aurora da secção de pessoal, mulher portadora de uma grande rodagem de estrada, mas que a idade fez encostar às boxes, e que se vai roçando languidamente pelas nossas pernas acima à medida que vai emborcando copos de branco.
É então que se coloca o problema de saber o que se há-de dizer àqueles seis ou sete marmanjos com quem repartimos a mesa. Contar anedotas porcas pode ser perigoso, porque nunca sabemos se o administrador que para ali está a fingir que é igual a nós não será maricas e nos limpa o sebo logo no dia a seguir. Falar de gajas e futebol equivale a sermos fulminados pelo mulherio que nos fica de trombas para o ano todo. De trabalho, nem pensar, porque isso fazia logo com que cada um começasse a puxar pelos galões e lá se ia por água abaixo a fraternidade. A única saída é mesmo a de ficar calado, com um sorriso idiota nos lábios, dizendo para o da esquerda que a sopa está melhor do que a do ano passado e para o da direita que o bacalhau está uma delícia.
A melhor safa destas coisas é mesmo arranjar-mos maneira de ficar ao lado da estagiária que entrou o mês passado, gastarmos o jantar nos preliminares do paleio e partirmos a seguir para uma visita às iluminações de Natal. Com um bocado de sorte, recebemos logo naquela noite um presente caído do céu.

Por:
Manuel Ribeiro
In "Notícias Magazine" de 07.DEZ.2003

Concordo e subscrevo plenamente.

Sem comentários: